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Publicado em All Jazz 2
Abril de 2002

 

 

 

 

Fez em Novembro passado trinta anos! Foi em 20 e 21 de Novembro de 1971.
Estava-se em plena “primavera marcelista”. Era Outono e por toda a Lisboa não se falava noutra coisa! Alguns jornais, rádio e mesmo a televisão interrompiam a costumeira verborreia institucional para antecipar o I Festival de Jazz de Cascais!

Em abono da verdade, este era de facto o segundo evento do género em apenas quatro meses. Que o Agosto anterior tinha já visto reunir, num acontecimento não enquadrado pela Mocidade Portuguesa, Nossa Senhora de Fátima, o futebol ou qualquer instituição bafienta mais ou menos naftalinizada, mais de uma dezena de milhar de jovens, em Vilar de Mouros, para um Festival de Música onde os cabeças de cartaz eram os Manfred Mann e o (então) jovem Elton John!. Apesar do sucesso, o Vilar de Mouros teria segunda edição apenas dez anos depois.

Mas Vilar de Mouros era lá longe, no Norte, ao pé de Caminha e Cascais era mesmo aqui ao lado da Capital do Império e a coisa auspiciava-se incómoda.
A organização estava a cabo de um trio composto por Luis Vilas-Boas, João Braga e Hugo Mendes Lourenço, mas inquestionavelmente Vilas-Boas, o sócio n.º 1 do Hot Club de Portugal, era a cabeça do Festival.

O programa era de tal forma ambicioso, que fez dele o mais importante dos festivais de Jazz de sempre, até hoje: o quarteto de Ornette Coleman (com Charlie Haden, Ed Blackwell e Dewey Redman), o Jazz eléctrico de Miles Davis (em septeto com Keith Jarrett e Gary Bartz), Joe Turner e Dexter Gordon, Phil Woods And His European Rhythm Machine (Gordon Beck, Ron Mathewson e Daniel Humair), os Giants Of Jazz (com Dizzy Gillespie, Thelonious Monk, Sonny Stitt, Kai Winding, Al Mckibbon e Art Blakey) e ainda um quarteto nacional, “The Bridge”, composto da vedeta Kevin Hoidale nos teclados, o contrabaixista Jean Sarbib, um tal de Adrien Ransy na bateria e um saxofonista que dava pelo nome de João Ramos Jorge, que mais tarde adoptaria o nome por que ainda hoje é conhecido, Rão Kyao.

Para o público, aquela era uma festa de música mas, tão importante quanto isso, era uma oportunidade única de contestação ao regime decrépito que acabaria por cair dois anos e meio após. A música e o Jazz apareciam na sua aparente total liberdade formal como expressão dessa contestação aos valores culturais instituídos, o fado – a desgraça do ser português – o folclore purulento ou as touradas à portuguesa.
E só nesta necessidade de contestação primária se poderá compreender um pouco algum mau comportamento do público, a desatenção, ou as enormes vaias com que Luis Vilas-Boas era brindado sempre que aparecia em palco e que muito o desgostavam.

Foto by Nuno Calvet

Os organizadores poderiam contar inúmeras histórias, as peripécias rocambolescas do que significou realizar um Festival de Jazz em 1971. Umas histórias contarão como os sponsors retiraram o apoio em cima da hora, deixando o festival inteiramente a descoberto (apenas tendo sido salvo pelo sucesso de bilheteira), ou como aparecia o fadista João Braga ao lado de Luis Vilas-Boas na organização do Cascais Jazz.

Mas talvez que a mais contada da histórias seja a de Charlie Haden: curiosamente o único músico branco do quarteto de Ornette Coleman, o contrabaixista dedicou uma das composições aos movimentos de libertação de Angola, Moçambique e Guiné. E mais não foi necessário para se desencadear um enorme pandemónio: era o momento por que aguardavam os militantes da extrema esquerda para encher o pavilhão de panfletos contra a guerra colonial, enquanto os quase dez mil assistentes se manifestavam ruidosamente. A polícia de choque que estava estrategicamente colocada na rua ao lado do pavilhão achou da mesma forma que esta era a sua deixa “para molhar a sopa” e resolveu invadir o recinto. Felizmente o pavilhão estava cheio que nem um ovo e àquela hora já ninguém conseguiria entrar nem que tivesse bilhete!

No fim da noite, a PIDE aguardava Charlie Haden e Luis Vilas-Boas que se revolvia a explicar que não tinha tido nenhuma culpa no sucedido e que tal se não voltaria a repetir. Várias horas se passaram até o “Vilas” conseguir autorização para a segunda noite do festival, com a promessa de ser este o último festival de Jazz em Portugal (as coisas não se passaram assim e em 1972 ocorreria a segunda edição). Entre os vários argumentos, prevaleceu o bom senso: estavam em Cascais, literalmente acampados, dez mil jovens, e iria ser muito complicado desmobilizá-los da sua intenção de assistir ao concerto dos “Giants Of Jazz”!
Quanto ao Charlie Haden, depois de umas horas no calabouço, valeu-lhe a sua qualidade de cidadão norte-americano e a intervenção da embaixada dos EUA que convenceram a PIDE a oferecer a viagem grátis, com direito a escolta VIP, até ao Aeroporto da Portela. Charlie Haden não mais entrou em Portugal antes do 25 de Abril de 1974, mas de qualquer forma, não seria o Vilas que o contrataria, que por pouco lhe tinha acabado o festival, logo no seu primeiro dia. Luis Vilas-Boas nunca mais quis ouvir falar de Charlie Haden.

Para a maior parte da assistência, maioritariamente jovem, estes dois dias foram o seu baptismo no Jazz. O que ali se passou marcaria de certa forma os gostos de toda uma geração. Entre Ornette, Miles Davis, Giants of Jazz e Pilll Woods, a música de Miles leva claramente vantagem pela aura de misticismo e modernidade que a envolvia, embora seja de admitir que poucos terão percebido verdadeiramente o que ali se tinha passado. Este não era claramente público do Jazz, mas o Jazz colheu aqui a simpatia de muitos milhares de jovens.

Vale a pena notar como a escolha de Luis Vilas-Boas era bastante criteriosa e mesmo audaciosa, ao pretender realizar um festival que espelhasse as diversas tendências do Jazz que se fazia na altura. Por outro lado, uma relação próxima com George Wein, o patrão do Newport em digressão, facilitava-lhe a tarefa da programação.

A primeira noite foi dedicada ao Jazz moderno, enquanto a segunda alinhava mais pelo mainstream.
O Jazz “eléctrico” de Miles Davis tinha surgido apenas dois anos antes com “Bitches Brew” e a formação que tocou em Cascais continha ainda uma componente “africana”, com dois percussionistas além do baterista. Keith Jarrett foi fantástico! tocou rodeado de teclados e a cabeleira enorme foi o contraponto às intervenções de Miles. A figura de Miles passeou-se lentamente pelo palco vestido de reflexos prateados e suor. Mesmo para quem já alguma vez tinha ouvido o som de uma trompete, aquela coisa era mesmo muito estranha! Miles era a personificação da modernidade do Jazz e o público assim o entendeu.

Ornette era o profeta do Free Jazz e a intervenção de Haden estava de acordo com os ideólogos que ligavam intimamente o advento do Free Jazz e a Revolução iminente (“Free Jazz/ Black Power”, Philippe Carles, e Jean-Louis Comolli). Provavelmente pouco da assistência terá compreendido o que se passou (de música falando) no palco da intervenção do quarteto de Ornette Coleman, Mas isso também não era muito importante. Ornette foi caótico, demolidor, free!

Mas o final de Sábado ainda reservaria a Cascais uma boa surpresa com a actuação de Dexter Gordon, que tocou acompanhado de um grupo português composto por Marcos Resende no piano, Jean Sarbib e Manuel Jorge Veloso na bateria.

A seguir foi a vez do hard-bop peculiar da “European Rhythm Machine” de Phil Woods que contaminou o pavilhão com o seu ritmo avassalador. Músicos como Daniel Humair fazem sempre a diferença e Woods estava auge da sua energia.

Poucos se terão apercebido de que pelo palco do segundo dia do festival passavam verdadeiras lendas do Jazz. E se o bop tinha já 30 anos, Dizzy Gillespie continuaria a fazer bons discos e os Messengers de Art Blakey seriam ainda por muito tempo a fábrica de talentos que haveria de gerar, por exemplo, os irmãos Marsalis. Mas Monk retirar-se-ia das lides pouco depois e o bebop pertencia, de facto, já por essa altura, à história. Os “Giants of Jazz” eram de certa forma o canto do cisne do bop.

Devo confessar que, também no que me respeitava, o festival era uma verdadeira overdose para quem ouvia Jazz pela primeira vez na vida (de tudo, aliás, e não apenas de Jazz). Da noite de Domingo, dos “Giants Of Jazz”, recordo as bochechas e a alegria de Dizzy Gillespie e a energia contagiante de Art Blakey, mas ignorei quase inteiramente Thelonious Monk ou Sonny Stitt.

Miles Davis by Nuno Calvet

A ajudar a impaciência do público, os concertos começavam sempre tardíssimo e entre cada grupo mediava com frequência uma hora, que a organização aproveitava para fazer passar alguma publicidade. As mudanças de equipamento eram um desastre e o público não poupava nos assobios. Comparado com o profissionalismo e a velocidade com que hoje qualquer anónima banda muda todo um palco, aquilo era mesmo o paleolítico...

Do lado da plateia e das bancadas imperavam os coloridos, as barbas, as jeans, os charros e o álcool, os panfletos, ruído, irreverência, amor, juventude e uma alegria muito grande. Os bancos eram duros e frios (cimento) e o fumo coabitava com o barulho. Nas duas noites passaram pelo Pavilhão do Dramático Cascais mais de quinze mil pessoas! O pavilhão, esse, era um mastodonte frio e surdo, de acústica deficiente. E a acrescer às condições acústicas, havia a impossível situação visual de uma boa parte da assistência que estava colocada numa das bancadas por detrás do palco. Se se souber que a parafernália do septeto do Miles Davis tinha vários metros de altura de colunas e aparelhagem de toda a espécie, poderá perceber-se o que (não) viu essa fatia da assistência...

Com tudo isto, quatro grupos por noite, confusão, entusiasmo, histórias rocambolescas e atrasos intermináveis, a hora de acabar o festival era muito próxima das cinco da manhã... Mas a organização – previdente – tinha providenciado um comboio especial de regresso à capital. E acreditem que era mesmo muito estranho, em 1971, passear por Lisboa às 6 da manhã!

Fez em Novembro passado 30 anos! Irrepetível e inesquecível, ele foi o mais importante festival de Jazz de sempre em Portugal! E se é verdade que o Hot Club de Portugal tinha já por essa altura 20 anos de idade e que a rádio passava até, desde 1966, cinco minutos de Jazz por dia, o I Festival Internacional de Jazz de Cascais foi verdadeiramente o primeiro encontro do (grande) público português com o Jazz.


Leonel Santos

(fotos: Nuno Calvet)